Uncategorized

Acho que não.

– A lista de pessoas que se foram está cada vez mais longa, e sinto como se só estivesse aguardando chamarem meu nome.
– Você sempre teve um coração sensível. Não pode esperar por nada, Mattie. Se fechar os olhos, reter a respiração, ou ficar no mesmo lugar a vida toda, continuará girando com o mundo. Não há espera.
– Mas também não há como superar algumas coisas, há?
– Acho que não.

Do filme Get Low (2009)

Identidade, Liberdade, Literatura, Vida

Arturo Bandini.

Prologue to Ask The Dust by John Fante, 1990 – John Register


Arturo, meu rapaz. Meu querido Arturo. Parece que você sofre tanto e tão injustamente. Mas você é corajoso, Arturo. Você me lembra de um valoroso guerreiro com as cicatrizes de um milhão de conquistas. Que coragem a sua! Quanta nobreza! Quanta beleza! Ah, Arturo como você é realmente bonito! Eu o amo tanto, meu Arturo, meu grande e poderoso deus. Pode chorar agora, Arturo. Deixe suas lágrimas escorrerem, pois a sua é uma vida de luta, uma batalha amarga até o fim, e ninguém sabe disso a não ser você, ninguém exceto você, um belo guerreiro que combate sozinho, inflexível, um grande herói como o mundo jamais conheceu outro igual.

John Fante, O Caminho de Los Angeles (José Olympio, pg. 133).

Beleza, Literatura, Noite, Solidão, Vida

Acendedor de Lampiões

[Bob Barker, Lamplighter]

 

A escada pesa-lhe cada dia mais, e cada dia mais Quaquéo encontra dificuldade em trepar pelos já gastos degraus, com aquela perna mais curta que a outra.
Agora, quando já está nos últimos lampiões, nos becos mais íngremes, ao alto da colina, demora-se um bocado sobre a escada, como que debruçado, ou melhor, como que pendurado pelas axilas ao braço do lampião, com as mãos penduradas, a cabeça apoiada sobre um ombro; e, naquela postura de abandono, lá em cima, continua a meditar e a raciocinar consigo próprio.
Pensa em coisas tristes e estranhas.
Pensa, por exemplo, que as estrelas, por mais densas que sejam, certas noites, alargam-se, sim, e picam o céu, mas não chegam a iluminar a terra.
– Iluminação desperdiçada!
Mas que bela iluminação! E pensa que, uma noite, sonhou que cabia a ele acender toda aquela iluminação do céu, com uma escada de que não se via o fim, e que ele não sabia onde devesse apoiá-la, e cujas estacas lhe tremiam entre as mãos incapazes de suportar tamanho peso. E como faria para subir, ir para o alto, por aqueles infinitos degraus, até chegar às estrelas? Sonhos! Mas que angústia e que desnorteamento, no sonho!
Pensa que é mesmo triste aquela sua profissão, pelo menos para um acendedor de lampiões como ele, que já contraiu o péssimo hábito de raciocinar, ao acender os lampiões.
Mas será possível que também o ato material de produzir luz, onde há trevas, não desperte, com o tempo, mesmo no mais duro e escuro cérebro, certos lampejos de pensamento?
Quaquéo, certas noites, chegou até a pensar que ele, que faz a luz, faz também as sombras. Sim! Porque não se pode possuir uma coisa sem o seu contrário. Quem nasce morre. E a sombra é como a morte, que segue um corpo que caminha. Daí sua frase misteriosa, que parece uma ameaça gritada do alto da escada, no ato de acender o lampião, e que outra coisa não é senão a conclusão de um seu raciocionar.
– Espere aí, espere aí, que lhe prego a morte atrás!
Afinal, Quaquéo pensa que sua profissão possui uma certa importância de ordem superior porque repara uma falha da natureza, e que falta! Aquela da luz. Há pouco que falar: ele, para a sua aldeia, é o substituto do sol. São dois os substitutos: ele e a lua; e revezam-se. Quando há lua, ele descansa. E toda a importância de sua profissão surge manifesta naquelas noites em que a lua deveria estar presente e não está.
Como é belo ver, de longe, no meio das trevas da noite, aqui e acolá, alguma aldeia iluminada!
Quaquéo vê diversas, todas as noites, quando chega aos últimos lampiões do alto do morro, e queda-se a contemplá-los longamente, com as mãos pendidas do braço do lampião e a cabeça apoiada a um ombro, e suspira.
Sim, aquelas pequenas luzes, lá embaixo, qual uma multidão de vaga-lumes em congresso, clareiam penosamente e permanecem a noite inteira a velar, no lúgubre silêncio, ruelas sujas e íngremes e tocas de miséria, talvez piores do que aquelas de sua aldeia; mas é certo que, de longe, produzem uma bela vista, e expandem um suave e melancólico conforto no meio de tanta treva. Passa de tanto em tanto alguma rajada de vento, e todas aquelas luzinhas, lá agrupadas, hesitam e parece que elas também suspiram.
E, ao vê-las assim longe, fazem-no pensa que os pobres homens, perdidos como se encontram pela Terra, entre as trevas, estão reunidos, aqui e acolá, para dar-se um mútuo conforto e auxílio entre si; ao invés, nada disso, não é assim: se uma casa surge em um lugar, outra não aparece ali perto qual uma boa irmã, mas ali se estabelece qual uma inimiga, pode tirar-lhe a vista e o respiro; e os homens não se reúnem aqui e ali para viverem em companhia, mas se acampam uns contra os outros para se guerrearem. Ah, ele, Quaquéo, conhece bem essas coisas! E dentro de cada casa há guerra, entre aqueles mesmos que deveriam amar-se, e estar de acordo para se defenderem dos demais. Não é talvez sua esposa sua mais acérrima inimiga?
E se Quaquéo bebe, bebe por isso; bebe para não pensar em certas coisas, que o faziam desleixar-se dessas obrigações, de que se acha tão profundamente compenetrado. Mas é verdade que, afinal, todos nós temos tantas outras que não desejaríamos ter. Não desejaríamos tê-las, mas temo-las.
– Eh, rato velho!
Quaquéo dirige-se a um morcego. Chama-o de rato velho, porque se trata de um rato que criou asas. Outras vezes, dirige-se a algum gato que desliza rente ao muro e pára de repente, encolhido e oblíquo, a mirá-lo, ou a algum cachorro vagabundo e melancólico, que se põe a segui-lo de um lampião a outro, pelos altos becos desertos, e se deita à frente, debaixo de cada lampião, esperando que o acenda.

Trecho do conto “Certas Obrigações“, de Luigi Pirandello (Odisséia Editorial, trad. de Jacob Penteado). O copiei aqui, palavra por palavra, porque me parece condizente com estas luzes que brilham lá fora, nesta época do ano; pela beleza da tradução e da imaginação de Pirandello; além disso, porque eu mesmo me sinto um pouco Quaquéo. E talvez, quem sabe, você também. Cada um por suas razões.

Feliz Natal.

Ceticismo, Esperança & Otimismo, , Identidade

Cuando deja uno de creer en sí mismo.

Cuando deja uno de creer en sí mismo, deja de producir o de luchar, incluso de hacerse preguntas o de responderlas, siendo así que debería ocurrir lo contrario, ya que justo a partir de ese momento se está capacitado, libre de ataduras, para aprehender lo verdadero, para discernir lo que es real de lo que no lo es. Pero una vez agotada la creencia en el propio juego, en el propio destino, uno pierde la curiosidad por todo, incluso por la “verdad”, aunque se esté más cerca de ella que nunca.

E. M. Cioran, Del Incoveniente de haber nacido (Taurus).

Amor, Ceticismo, Desejo, Diálogos, Escolhas, Felicidade, Humor, Mudanças, Sentimentos/Emoções, Sexo, Solidão

Ok.

– Faz quanto tempo?
– Um ano e meio.
– E você ainda está sozinho?
– Não, faz um ano e meio que eu vivo como um monge. Eu não acredito mais nas mulheres. As mulheres são sanguessugas. Elas te usam e te jogam fora.
– Então o que você quer comigo?
– Você é diferente.
– Eu percebi isso de cara, quando você disse que eu era cego. Que tudo era um ponto cego em volta do meu caminhão. Muito bem observado. Disse muito bem. Você é uma mulher inteligente. Não no sentido de esperta… Isso também, mas inteligente como uma coruja.
– Uma coruja?
– Sim, quer dizer…você me entende.
– Johnny, vou te contar uma coisa. O que eu menos preciso na minha vida é mais um homem. A minha vida já é suficientemente complicada. Quero ir para casa.
– Eu vou com você. Ficou bem de boina.
– É da minha filha.
– Assim você parece uma italiana.
– Você não tem vergonha, não?
– Só estou olhando seus tornozelos. Bonitos tornozelos. Você merece sapatos elegantes.
– Eu não vou transar com você. Nem em mil anos. Você ouviu? Ah, me deixa em paz.
– Qual é o problema, de verdade?A noite está bonita,você é bonita. Não tem nada para experimentar, nada para sentir? Como dizem os italianos: “Una notte senza amore è una notte perduta”.
– Como é?
– ‘Uma noite sem amor é uma noite perdida’.
– Nós não estamos na Itália. Estamos em Ledeberg. E aqui não tem amor.
– Eu olho para você e vejo a Mona Lisa. Olha, quando você sorri um pouco, quero ficar à toa. Com o meu caminhão no horizonte. Quero ficar com você. Você é minha Mona Lisa.Estou louco por você, como Da Vinci estava pela Mona!
– Merda, diz de uma vez que quer transar comigo.
– Mas não… minhas intenções são nobres.
– Você fala demais. Além disso, Da Vinci era bicha.
– Sério?
– E a Mona Lisa não está sorrindo. Na verdade, está deprimida. Ela tenta se esconder. Ela está presa em si mesma.
– Você não me entende.
– Você só quer transar comigo.
– Não é verdade.
– É só isso, sim, amigo.
– Tudo bem. OK.
– OK o que?
– Sim, você tem razão quanto a querer te levar para a cama.
– Você quer mesmo?
– Sim.
– Então simplesmente diga.
– Bem, eu gostaria com você…Você sabe disso.
– Tudo bem.
– O que quer dizer?
– Foi o que eu disse: tudo bem.
– OK.

Do filme Moscou, Bélgica (2008)

Cansaço, Cinismo, Diálogos, Julgar, Palavra, Valores, Verdade

Minha mãe dizia que a fofoca é a rádio do Diabo.

– O que as pessoas disseram sobre o acontecido na cidade?
– Há dois lados para cada história.
– As pessoas dizem isso, mas não acreditam nisso. Pensam de um jeito e não querem saber de mais nada.
– É, Sr., acho que as pessoas têm tanto medo do que não conhecem que não sabem o que fazer para se sentirem melhor. Mas acho que não sabemos a verdade real sobre nada. Eu sei que não. Apenas suponho na maior parte do tempo.

Do filme Get Low (2009).

Escolhas, Felicidade, Liberdade, Mudanças, Real/Realidade, Sentimentos/Emoções, Vida

Eu, alquimista de mim mesmo.

EU, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações)

Conhecimento, Desejo

Eu quero superentender.

De agora em diante eu quero mais do que entender: eu quero superentender, eu humildemente imploro que esse dom me seja dado. Eu quero entender o próprio entendimento. Eu quero atingir o mais íntimo segredo daquilo que existe.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações)

Beleza, Esperança & Otimismo, Identidade, Liberdade, Mudanças, Questões, Real/Realidade, Sentimentos/Emoções, Valores, Verdade, Vida

Uma novidade de espírito.

Agora que existem computadores para quase todo o tipo de procura de soluções intelectuais — volto-me então para o meu rico nada interior. E grito: eu sinto, eu sofro, eu me alegro, eu me comovo. Só o meu enigma me interessa. Mais que tudo, me busco no meu grande vazio.Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pede me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações)

Cansaço, Ceticismo, Escolhas, Identidade, Liberdade, Trabalho

Se eu fosse um vencedor?

Ter dentro de mim o contrário do que sou é em essência imprescindível: não abro mão de minha luta e de minha indecisão e o fracasso – pois sou um grande fracassado – o fracasso me serve de base para eu existir. Se eu fosse um vencedor? morreria de tédio. “Conseguir” não é o meu forte. Alimento-me do que sobra de mim e é pouco. Sobra porém um certo secreto silêncio.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações)

Grifos meus.

Destino/Futuro, Escolhas, Felicidade, Identidade, Liberdade, Mistério, Mudanças, Real/Realidade, Sentimentos/Emoções

Milagre é o ponto vivo do viver.

Milagre é o ponto vivo do viver. Quando eu penso, estrago tudo. É por isso que evito pensar: só vou mesmo é indo. E sem perguntas por que e para quê. Se eu penso, uma coisa não se faz, não aconteço. Uma coisa que na certa é livre de ir enquanto não for aprisionada pelo pensamento.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações)

Íntimo & Pessoal, Cansaço, Tédio, Textos próprios, Trabalho, Valores, Vida

Procura-se um emprego inusitado.

Procura-se um emprego inusitado. Não interessa o primeiro milhão, mas a bilionésima batida de um coração satisfeito com o único tempo que teve para pôr a venda. Se este tempo for digno daquilo que o melhor da humanidade pôs em mim, eu hei de ser o seu escravo liberto. A qualidade dos serviços prestados está em meus olhos e em minhas mãos. Pois nada mais são do que a exata medida dos extremos de um homem. É fácil saber reconhecê-lo, desde que o contratante saiba o que lhe enche os próprios olhos e com o que se ocupam as próprias mãos. O resto é facilmente negociável, por falta de palavra menos indigna, conforme os ditames do mundo como ele é. Para contato com este flanêur (não lhe soa bem a palavra?) usar a palavra-chave IMAGINAÇÃO. É dela que nasce uma nova sociedade e um novo mundo de relações e trocas sociais. Não escolhemos o que somos tanto quanto sonhamos, e além da função social do trabalho, menos importante, a meu ver, a vida parcialmente produtiva, é uma longa e aborrecida espera, citando um grande amigo livresco. Subverta você também as relações empregatícias. É porque você e eu as criamos que não dormimos bem a noite. O mundo não é feito de boas pessoas, mas de bons negócios? Os negócios não deveriam estar ao lado dos interesses da coletividade de modo a que todos nós criássemos uma sociedade mais justa e socialmente aceitável? Você deve estar pensando que eu tenho 15 anos, não é? Bom. Eu não tenho. E estou falando sério. E você sabe exatamente em que pontos a vida em si fala por mim – e penso eu, fala por você também. Interessados mandar carta escrita à mão e registrada para o endereço a ser observado nestas paragens. Mais e melhores boas pessoas trabalhando para você, digo, bons negócios!

Att.

Você sabe quem.

Escolhas, Identidade, Morte, Mudanças, Palavra

Meu coração está espantado.

Parece que chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar-me plenamente? é uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações)