Quem possui muito espírito faz muito da sua vida – cada tomada de conhecimento, cada acontecimento seria para ele inteiramente espiritual – um primeiro membro de uma série infinita – o início de um romance infinito.
– Novalis
Quem possui muito espírito faz muito da sua vida – cada tomada de conhecimento, cada acontecimento seria para ele inteiramente espiritual – um primeiro membro de uma série infinita – o início de um romance infinito.
– Novalis
a pessoa que me preenchia
saiu.
esperem um momento. ela volta já.
Nuno Moura
Mudar voluntariamente a sua maneira de ser é muito difícil, mesmo depois de termos tomado consciência do nosso problema. A este respeito, Freud descreveu a compulsão de repetição, a tendência que nos leva a repetir sistematicamente de uma maneira irreprimível os mesmos erros, os mesmos comportamentos inadaptados.
Dicionário Enciclopédico da Psicologia, pg. 303.
Se aqui não estão os meus sonhos
como posso dormir aqui?
Miriam Reyes
não,
as palavras
não fazem amor
fazem ausência
Se digo água, beberei ?
Se digo pão, comerei ?
Alejandra Pizarnik
Nem sempre o Mistério
está fora do alcance da mão, como
o país estrangeiro. Por vezes ele viaja para cá,
encosta-se às decisões materiais de
um dia vulgar;
e surge, súbita e absurdamente,
no meio de uma ação do quotidiano.
Descuidados, nessa altura, chamamos ao mistério erro,
e rapidamente o eliminamos.
Gonçalo M. Tavares
Às vezes escondo-me no meu corpo e ninguém me vê.
As pessoas falam comigo e não notam que eu não falo com elas.
Posso até dizer algumas palavras,
posso até exprimir-me num longo discurso,
mas a verdade é que não falo com elas.
Estou escondido algures no meio do meu corpo.
Gonçalo M. Tavares
– Filho, o que queres fazer da vida?
E eu respondi-lhes:
– Tudo, exceto ser espectador.
Gonçalo M. Tavares
(…)
Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes coletivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego em casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.
José Miguel Silva
Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
– já me aconteceu antes.
Pois sei que – em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade –
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amen.
Clarice Lispector
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.
Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso”. Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.
Do poema “Embriaguem-se”, de Charles Baudelaire.
Não me deixe viver
o que posso,
que me seja permitido
desaprender os limites.
Fabrício Carpinejar
diretamente do seu blog
Estes são realmente pensamentos
de todo homem em qualquer tempo e lugar,
não são originais meus;
e se não são de vocês tanto quanto meus
não querem dizer nada
ou quase nada;
e se não são a pergunta
e a resposta à pergunta,
não significam nada;
e se eles não se colocam tão perto
quão distantes parecem,
não valem nada…
(Walt Whitman, Folhas da Relva)
Ensaio
Citar vem do latim: citare. Referir ou transcrever (um texto) em apoio ao que se afirma, segundo o Aurélio. A língua que falamos no dia a dia favorece os tagarelas, soneteiros e os que falam pelos cotovelos. Quantas palavras imprecisas, ditas ao vento, são necessárias para descrever o silêncio? “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”, sintetizou o filósofo Wittgenstein.
Aforismos e epigramas, máximas e pensamentos, sentenças e ditos memoráveis nos lembram que tudo na vida é por aproximação, da matemática ao amor. E pode crer, “o que hoje é demonstrado, um dia foi apenas imaginado”, como afirma o poeta Blake.
Toda citação maior é uma espécie de pensamento lúcido, fragmento condensador de uma possível beleza-verdade, farol que ilumina o mundo em ruínas. A citação é nuvem “onde o sol cala”, como no Inferno de Dante: “No meio do caminho desta vida / me vi perdido numa selva escura, / solitário, sem sol e sem saída”.
Jorge Luis Borges era um escritor pródigo em citações. Rescreveu argumentos, lendas e fantasias de outros séculos. No ensaio intitulado “Livro”, Borges anota que, “certa vez, perguntaram a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito Santo havia escrito a Bíblia. Ele respondeu: Todo livro que vale a pena ser relido foi escrito pelo Espírito Santo”. A bíblia não é nada mais do que um mosaico de citações, sermões e parábolas.
Muitos leitores acreditam que os citadores são pensadores originais. Lucrécio achava que “nada pode ser criado a partir do nada”. Já André Gide, por sua vez, diz que, “todas as coisas já estão ditas, mas, como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre”. A citação é uma lembrança do que “poderia-ter-sido”, do “não-mais” ou do “tarde-demais”. O pensador romano Pompeu é o autor do célebre dístico que diz “navegar é preciso, viver não é preciso”. Esta sentença popular também foi citada por Plutarco e pelo poeta Fernando Pessoa.
Poetas, filósofos, pregadores e animadores sempre foram mestres em citar o pensamento dos outros. Mas há quem use as sentenças para ter uma visão do mundo ou para simplesmente levar a vida. No entanto, “um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundado e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho”, como muito bem definiu Friedrich Schlegel.
Razão
A citação nos leva a um livro, a um lugar qualquer, a um tempo exato. Desafia a realidade, ensina a ver o mundo com os olhos dos outros e a conhecer as coisas do nosso jeito de ser. “Ser ou não ser, eis a questão”. Freud afirma que “sou onde não penso”. “Nada do que é humano me é estranho”, pensa Terêncio. Esse era um dos aforismos preferidos de Karl Kraus, especialista em citar para ironizar.
Um aforismo é a síntese do conhecimento. Kraus diz que um aforismo jamais diz a verdade; ele sempre diz uma meia verdade, ele sempre diz uma verdade e meia.
junho, 2009
Pedro Maciel (Belo Horizonte/MG). Autor do romance A hora dos náufragos (Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2006). Segundo o poeta e tradutor Ivo Barroso, “Pedro Maciel nos faz acreditar na possibilidade de que a literatura brasileira possa ainda nos apresentar alguma coisa de novo que, curiosamente, remonta à própria arte de escrever: o estilo. Seu livro A hora dos náufragos nos perturba pela força de sua linguagem. O que há de mais próximo desse livro seriam os famosos fusées de Baudelaire”.
Tenho a impressão que a vida, as coisas foram me levando. Levando em frente, levando embora, levando aos trancos, de qualquer jeito.
Caio Fernando de Abreu.