HQs, Morte

Até você perceber que é assim.

A morte de Sandman

Eu tenho uma teoria.

Na verdade eu tenho um monte de teorias. Sou uma fábrica de teorias. Esta é a mais nova.

A de que todas as coisas sensatas, tudo que se pode saber, tudo aquilo que conta como sabedoria de verdade, tudinho mesmo, não passa de besteira, obviedades e cretinices.

Ou pelo menos parece, até você perceber que é assim.

Veja os clichês, por exemplo.

Acho que cada vez gosto mais de clichês.

“Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida”. É uma frase boba, mas nem por isso menos verdadeira.

E todo esse papo de amor.

 

Da HQ de Neil Gaiman, Morte – O grande momento da vida, pg. 22 (Abril).

Cansaço, Desejo, Esperança & Otimismo

Descanso.

Não tenho paciência para ouvir os outros, não tenho paciência para viver, não tenho paciência para morrer, estou aqui, parada, num desequilíbrio interminável, nunca mais acabo de cair, irrito-me se me falam, sofro se me não dizem nada, odeio o gesto caridoso: a mão de alguém nos meus cabelos, o que eu quero é uma voz que me queira, um momento de descanso nessa voz.

Rui Nunes, em Grito.

Cinema

Deixa ela entrar.

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A associação do vampirismo com uma idéia de heroísmo e maldição não é nova no cinema, mas o filme sueco Deixa Ela Entrar (Låt den Rätte Komma In, 2008) consegue renovar o gênero – e conquistar fãs em festivais mundo afora – por fazer dessa maldição uma metáfora das dificuldades da adolescência.

Primeiro conhecemos Oskar (Kåre Hedebrant), garoto de 12 anos, cansado de ser saco de pancada na escola, que treina seu revide sozinho no quarto, com uma faca. Quem parece um vampiro aqui é ele: loiro, retraído, branco quase albino, com sangue nos olhos e, descobriremos depois, até uma tendência para o masoquismo. Mas Oskar é só um garoto normal.

Até o dia em que ele conhece Eli (Lina Leandersson), garota que acabou de se mudar para o prédio de Oskar e que chama atenção pela janela do quarto, tapada com papelão. Como Oskar, Eli não é muito de socializar. E ela também tem 12 anos, só que há muito mais tempo. Acabam ficando amigos, no jardim coberto de neve diante do prédio, à noite.

A relação clássica do gênero pressupõe um vampiro secular, ciente do fardo que carrega, e um humano, que, na sua breve e ignorante existência, inveja o poder do outro. É evidente que, ao descobrir que Eli é uma vampira, Oskar não se afastará – pelo contrário. Os acontecimentos seguintes são aqueles que, nesta história de formação, definirão quem Oskar realmente é.

Há toda uma tradição envolvendo o gênero, e o diretor Tomas Alfredson se livra um pouco dessa carga com uma dose de ironia. O pai de Eli só toma leite, o gordo que testemunha os crimes é criador de gatos, o blusão que Oskar veste na casa do pai parece uma capa vermelha de Drácula… Ao adicionar em seu filme realista uma dose de caricatura, Alfredson se permite não levar-se a sério demais.

E cria-se então espaço para fazer um pequeno grande filme. Alfredson tem grande apuro estético no uso do scope – a proporção 2,35:1 de tela é ideal para as paisagens suecas – e à atmosfera gelada adiciona-se um senso de economia na hora de mostrar a vampira em ação. É suspense, enfim, que o diretor procura, e espalhar aos poucos as imagens de terror (como o rosto desfigurado ou a combustão) amplia e valoriza esse suspense.

Deixa Ela Entrar tem seus didatismos – como contaminar a mulher mais velha para mostrar como Eli é heróica na sua luta interior – mas no final prevalecem a bela construção da relação dos dois garotos e as analogias com a adolescência normal (como o complexo de Electra de Eli levado às últimas consequências). Se você é fã de Crespúsculo, em particular, ou de filmes de vampiros, de modo geral, não deixe de assistir.

[omelete]

Ciência, Deus, Evolução, Vida

O piscar de um vagalume.

Se os 4 bilhões de anos em que a vida esteve na Terra fossem resumidos num dia de verão, então os últimos 200 mil anos – que testemunharam a ascensão de humanos anatomicamente modernos, a origem das linguagens complexas, da arte, da religião, do comércio, a aurora da agricultura, das cidades e de toda a história escrita – se encaixariam no piscar de um vagalume, pouco antes do pôr-do-sol.

Carl Zimmer, O livro de ouro da evolução – o triunfo de uma idéia. (Ediouro, pg. 126)

Insônia, Medo, Tédio, Tempo

Não consigo sossegar.

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Porque dou eu guarida no meu espírito a tanto lixo e disparate? Estarei na esperança de que, se o que sinto se disfarçar de pensamento, sentirei menos? Não serão todas estas notas as contorções sem sentido de um homem que não quer aceitar o fato de que nada há a fazer quanto ao sofrimento, a não ser sofrê-lo? Na realidade, pouco importa que nos agarremos aos braços da cadeira do dentista ou que mantenhamos as mãos quietas no colo. A broca continua a brocar.

E a dor continua a assemelhar-se ao medo. Talvez, mais precisamente, à ansiedade. Ou à expectativa. Estar simplesmente na expectativa de que alguma coisa aconteça. E isso dá à vida um sentido permanentemente provisório. Não parece que valha a pena começar a fazer seja o que for. Não consigo sossegar. Bocejo, agito-me, fumo demais. Até isto acontecer, tinha sempre demasiado pouco tempo. Agora não há mais nada senão tempo. Tempo quase puro, um vazio consecutivo.

C. S. Lewis, excerto de Dor.

Escrita, Identidade, Liberdade, Poesia

Esoteria

Tenho mais que fazer que reler-me.
Reler-me custa. É pensar prisioneiro.
Nenhuma, cadeia nenhuma serve ao pensamento livre
E a cadeia que em nós pomos na cabeça
é a pior,
é a pior de todas.
Já alguém alguma vez viu no ar um pássaro voando com as suas próprias asas? não, isso é engano.
O pássaro que voa, voa ajudado pelo vento.
E faz de conta
que asas não tem.
O ar o ajuda? Talvez… O ar o ajuda…
Se o pássaro, porém, quiser voar
duas vezes:
não voa, não voa!, com as dele mesmo
asas.
Dele é e não é o voo que lhe pertence.
E irrepetível é o ar que o move.
Dentro de si circula.

de Um e o Mesmo Livro, de Raul de Carvalho, 1984.

Esperança & Otimismo, Poesia

Domingo.

Na miséria mais funda
cintila uma estrela
a dizer que a vida
é bela.

No silêncio aflito
da noite (naufrágio
dos tristes)
alguém sonha e canta
virgens alegrias.

A manhã nascente
para ser merecida
tem que ser sangrada
com a própria vida.

De Luis Amaro, do poema “Conquista”.

Cansaço, Poesia

Sábado.

Digamos no final deste sábado que
a novidade foi nada se ter passado,
que tudo cada vez se volve mais eterno,
profundamente chato e sem contornos,
e que não é possível um pássaro de fogo
entrar-me no escritório, vulgo biblioteca.

Versos de Nuno Dempster, do poema “O Comboio”.

Criação, Desejo

Regra No. 5

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Nada é original. Apropria-te de tudo o que te enche de inspiração ou estimula a tua imaginação. Devora sem distinção filmes velhos e filmes novos, músicas, livros, quadros, fotografias, poemas, sonhos, conversas ouvidas por acaso, arquitetura, sinaléctica urbana, árvores, nuvens, movimentos de água, sombras e luz. Rouba apenas as coisas que falem diretamente ao teu coração. Se agires assim, a tua criação (tal como o teu fruto) será autêntica. A autenticidade é inestimável; a originalidade uma quimera. E não tentes dissimular o que pediste emprestado – reivindica-o se for teu desejo. Dê por onde der, lembra-te sempre do que disse Jean-Luc Godard: “O importante não é onde se apanha as coisas – é até onde se as leva”.

Jim Jarmusch

Cinema

Minha vida sem mim, de Isabel Coixet.

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Sinopse: O que você faria se recebesse a notícia de que tem apenas dois meses de vida?

Esse é o tema central do comovente “Minha Vida Sem Mim”, produzido por ninguém menos que Pedro Almodóvar.

Ann (Sarah Polley) é uma batalhadora jovem de 23 anos, que foi precoce em tudo na vida, especialmente na constituição de sua família. Foi mãe aos 17 anos, e novamente aos 19, e vive com o sossegado marido Don (Scott Speedman) e as encantadoras filhinhas em um trailer no quintal da casa de sua perturbada mãe (Debbie Harry). Trabalha à noite como faxineira em uma Universidade e, embora seja bastante reservada, tem como melhor amiga uma paranóica companheira de trabalho, Laurie (Amanda Plummer).

Repentinamente Ann começa a sentir enjôos e ter desmaios freqüentes. Desconfia estar novamente grávida, mas ao procurar um médico recebe a trágica notícia de que tem um tumor. O médico lhe explica que, por ser muito jovem não há possibilidade de cura, já que suas células são rápidas demais e o tumor já está se alastrando por todo o corpo. O médico lhe dá uma expectativa de dois meses de vida.

Ao contrário do que seria previsível diante da proximidade da morte, Ann decide não contar a ninguém seu destino, tentando ser objetiva para fazer tudo o que for possível no tempo que lhe resta. Elabora então uma lista de “coisas a fazer antes de morrer”, lista essa que inclui transar com outro homem para ver como é, dizer o que pensa sobre as pessoas, arranjar uma nova mulher para o marido e gravar mensagens de aniversário para as filhas.

Competentemente, Ann vai cumprindo suas “tarefas”, sem cair na autopiedade. Conhece um homem que se apaixona por ela (Mark Ruffalo, encantador), e inicia com ele uma tórrida e ao mesmo tempo doce relação de paixão e amizade. Enquanto isso, grava dezenas de fitas com mensagens para os aniversários das filhas.

Pelo breve resumo acima, poderíamos achar que se trata de mais um filme sentimentalóide sobre vida e morte, cheio de clichês e apelos para conduzir ao choro fácil. Mas não é o caso. Embora trate de um assunto triste, “Minha Vida Sem Mim” possui um roteiro delicado que se limita a contar a “história” de Ann, sem utilizar-se de excesso de sentimentalismo, comum a dramas dessa natureza.

Achei que Sarah Polley está ótima e contribuiu muito para o bom resultado final. Ela é uma atriz jovem e bonita, e mostrou neste trabalho que tem também muito talento. Conseguiu conduzir a personagem durante seus dias “pré-morte” com objetividade, sinceridade e leveza, o que torna o filme marcante para quem o assiste.

Aliás, momentos marcantes não faltam na fita e fui particularmente tocada pela relação que Ann mantém com seu novo amante, principalmente porque há uma sinceridade mútua muito bonita, uma cumplicidade que Ann não tem como o marido, embora o ame, e através desta relação é como se ela conseguisse completar algo de vazio que existia em sua vida, o que é recíproco da parte do rapaz.

Enfim, “Minha Vida Sem Mim” é feito com competência, deixando leve (ainda que triste) um tema muito trágico.

Minha vida sem mim
My life without me
Canadá/Espanha,
2003 – 106 min.
Drama
Direção: Isabel Coixet
Roteiro: Isabel Coixet, Nancy Kincaid (livro)
Elenco: Sarah Polley, Scott Speedman, Deborah Harry, Mark Ruffalo, Leonor Watling, Amanda Plummer, Maria de Medeiros, Jessica Amlee, Kenya Jo Kennedy, Alfred Molina

Cansaço, Desejo, Escolhas, Identidade, Poesia

Ambivalente

1.

Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.
Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.
A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.

2.

Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P’ra não chegar tarde
Não sei de que é que eu fujo
Será desta solidão
Mas porque é que eu recuso
Quem quer dar-me a mão
Vou continuar a procurar
A quem eu me quero dar
Porque até aqui eu só:
Quero quem, quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P’ra outro lugar

Lido aqui.