Poesia, Preceitos

Cânticos*

I

Não queiras ter pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Estarás em tudo,
Como Deus.

II

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens …
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade …
É a eternidade.
És tu.

III

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

* (3 de 26)

Cecília Meireles, “Antologia Poética“, Editora Record, 1963

Dor/Sofrimento, Poesia

Autocomiseração.

 

Nunca vi algo selvagem
tendo pena de si mesmo.
Cai um pássaro morto de frio de um galho
sem nunca ter tido pena de si mesmo.

Self-Pity

I never saw a wild thing
sorry for itself.
A small bird will drop frozen dead from a bough
without ever having felt sorry for itself.

LAWRENCE, D. H. The complete poems. Ware: Wordsworth, 2002. p. 382.

Escolhas, Felicidade, Identidade, Liberdade, Poesia

Mudando-me a mim?

Aceito a ordem
das coisas, a geometria
imposta do quarto?
Os objectos no
seu lugar de sempre,
a distância exacta
da cadeira à mesa,
do meiple à janela?
O sono do tapete?
O universo diário
do quarto alugado,
as molduras que
cercam, resguardam
naturezas mortas,
paisagens imóveis?
Aceito a minha vida?
Ou mexo no candeeiro,
desvio-o alguns centímetros
na mesa, altero
as relações das coisas,
afinal tão frágeis
que o simples desvio
dum objecto pode
romper o equilíbrio?
Pego no telefone
e grito ao primeiro
desconhecido: ouves-me?
Ou deixo tudo
tal como está,
medido, quieto
no rigor do quarto,
e eu hesitante
entre o soalho e o tecto?
Desloco o cinzeiro
sabendo que posso
matar mandarins,
provocar cataclismos,
fracturas, amores,
eclipses, sonhos,
com a ponta dum dedo?
Ou apago a lâmpada
eléctrica e entro
no mesmo torpor
que as flores do tapete,
a fruta dos quadros,
o frio, o bolor,
no chão, nas paredes,
o poema na mesa,
a mesa no espaço
do quarto comprado
mês a mês? Confundo
o aluguer e o tempo,
deixo-me ser
em cada milímetro,
em cada segundo,
do quarto, da vida,
o outro objecto
chamado inquilino?
Ou desencadeio
a insurreição
mudando de sítio
o meiple, a cadeira,
mudando-me a mim?

Carlos de Oliveira, profundo e perfeito.

Mudanças, Poesia

A arte de perder.

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A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.

Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe. A última,
ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.

Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.

– Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda – escreva tudo! – lembre desastre.

Elizabeth Bishop

, Mistério, Morte

Ama o teu princípio.

Os discípulos de Jesus disseram: “Manifesta-nos qual será o nosso fim”. Jesus respondeu: “Tendes descoberto o princípio vós que vos interessais pelo fim? No lugar onde está o princípio, lá estará também o fim. Louvado aquele que estará presente no princípio! Este conhecerá o fim e não padecerá a morte”.

Evangelho de Tomás, 36, 10

Amor

Para todos nós.

O atroz no sofrimento amoroso é ser punido por ter desejado fazer ao outro todo o bem possível, amando-o; é um castigo não por uma falta mas por uma oferenda recusada. E o não que recebem os reprovados do amor é sem recurso; eles não podem acusar o outro, são devolvidos ao seu próprio abandono.

Pascal Brukner, A Tentação da Inocência (Rocco), pg. 174.

Íntimo & Pessoal, Ceticismo, Desejo, Escolhas, Felicidade, Identidade, Liberdade, Textos próprios

A arte da negação.

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“We are a negation”
Artista: LuiNahtzi

Eu não troco um bêbado por um sóbrio, mesmo que um sóbrio esteja bêbado, eu não troco um doido por um sujeito todo bem informadinho, atualizadinho e dentro da última modinha, eu não troco um doido, aliás, por nada nesta vida, eu não troco uma puta por uma moça de família cheia de fantasias tão de acordo com a última moda nos salões das velharias, eu não troco a selva africana pela tua estradinha cercada de flores amarelas, eu não troco a minha guimba de cigarro pelo teu gel no cabelo, nem a minha última peça de roupa amassada por esse teu sorriso besta, eu não troco a minha falta de vontade pela tua ambição, nem as minhas pernas frágeis pela tua academia, eu não troco o beijo de minha mãe doente por teus beijos dados na tua última baladinha, em dezenas de menininhas todas tão lascivas e afetadinhas, eu não troco a tua boça de machão pelo meu amor pelas mulheres, e eu não troco a minha ignorância pela tua esperteza e safadeza, nem meus dois únicos amigos pelas tuas duas ou três contas no orkut, facebook, o escambau, lotadas e vazias, eu não troco a minha falta de jeito, pela tua habilidade com futebol, basquetebol, sinuca, poker e jogo do palitinho, tudo aquilo que te faz esquecer que perder é o maior aprendizado que se pode ter e que perder de propósito é ainda mais interessante e alucinante, quando então a gente simplesmente para pra pensar e vê o quanto tudo pode ser tão besta e sem propósito, e eu não troco a minha raiva pela tua educação, polidez, diplomacia, nem a minha busca de sentido pela tua última teoria, eu não troco o futuro que eu não vou ter, pela tua casa própria, por tuas viagens, por teu guarda-roupa com a última coleção, datada, eu quero este instante, na forma como ele é, problemático, caótico, desastrado, sem planejamento nenhum, descuidado, deprimente, consciente, sensível, inesperado e indescritível, e não troco o desastre que foi minha educação por tua MBA na FGV, eu quero o meu idioma fora de toda cartilha, o meu pensamento fora de todo esquema, a minha curiosidade no cimo das árvores, longe dos homens, longe da cidade, e mais próxima do que for, desde que seja qualquer outra coisa, eu não troco estas mãos por tudo o que apenas elas tocaram, nem estes olhos pelo que não souberam enxergar, nem este coração envelhecido, nem as sobras do meu fígado, nem as sobras do meu prato, nem o meu prato que é de papel, e ainda menos a fome com que a vida me ensinou a arte da negação.

Identidade, Poesia

Homens como eu.

The_Closet_Man_by_luciole

“The Closet-Man”
Artista: =luciole

 

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria

Poesia, Tempo

Um verbo.

Conjuga um verbo que conheças
no presente do indicativo,
soletra-o na segunda pessoa
do singular ao meu ouvido,
dá-me qualquer coisa
que me pareça eterno.

José Rui Teixeira

Sentimentos/Emoções, Solidão, Tédio, Tristeza

A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.

consolation_by_HeretyczkaA

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece…

Noites há, em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objectos pontiagudos que me rodeiam, no peso do tecto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o facto de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!

Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de urna forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.

Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, sou por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: «Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis»! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o facto da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!

Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.

Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o facto de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.

Dir-se-á que preciso de ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus actos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objectivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.

Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitectei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é urna boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.

Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam?

stig dagerman
a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer
versão de paula castro e josé daniel ribeiro
fenda edições
1989

Cansaço, Desejo, Destino/Futuro, Escolhas, Felicidade, Identidade, Liberdade

Desassossego.

fernando pessoa

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende.

Bernardo Soares
Livro do Desassossego

Amor, Íntimo & Pessoal, Poesia, Textos próprios

Amar é.

e se eu fizesse
todas as escolhas
erradas
ou a única escolha
certa
possível
tu ainda assim
me amarias?
e se eu partisse
e indo embora
a cada passo dado
para largar-me ao mundo
ainda mais que nunca
para longe de mim
e isso me fizesse algo de bom
algo de bem
algo que há tempos não sinto
tu ainda assim
me amarias?
e se a memória me levasse
e se a raiva me levasse
e se a saudade fosse tanta
e me levasse
para um canto incompreensível
das coisas que se sente
quando se está só
tu me amarias?
e se eu me conter
para dizer
novamente
que o amor é injusto
que a dor é injusta
que a história que contamos
é injusta
e o trabalho que nos ocupa
todo santo dia
é injusto
tu me amarias?
tu me amarias?
se eu me perdesse
se eu não me achasse
se eu não encontrasse saída
para o certo e o incerto em mim
se eu causasse o maior estrago
se eu fizesse o escândalo maior do mundo
se eu não pudesse mais parar por um único
segundo
tu me amarias?
e se eu fosse fraco?
e se eu fosse fútil?
e se eu não tivesse dinheiro nenhum?
nem empregos
nem a vontade de participar
do que fosse
e se eu fosse sujo
ríspido
roto
gasto
assustado
apavorado
amedrontado
e estivesse encolhendo
encolhido
por dentro
tudo isso
por dentro
tão diferente
do por fora
tu me amarias?
e se eu não achasse o caminho da volta?
e se eu não soubesse nada a respeito do que eu vejo no espelho?
e se eu nasci com a capacidade de jamais esquecer?
e se eu tiver vocação para me perder?
tu me amarias?
tu me amarias se
eu fosse tão velho quanto o tempo
ou infantil como a criança mais doce e ingênua
e se eu fosse apenas

humano

tu me amarias?
e se eu te amar para sempre
e te querer tão bem para sempre
e te desejar silenciosamente para sempre
e te enxergar
e te ver
e te perceber
e te notar
e te avistar
e tão simplesmente

nunca

mais

te

ter

tu me amarias?
tu me amarias
se eu deixar de existir
se eu deixar de perder as minhas coisas pelo caminho
se eu deixar de estar onde sempre estive
se eu deixar de ser qualquer coisa que se perceba
se eu deixar saudade nenhuma
tu me amarias?
tu me amarias pelas coisas que não pude ser
pelas que me cansaram
por aquelas que não pude compreender
pela raiva que senti
pela tristeza que senti
pela saudade que senti
e por ser como toda a gente deste mundo
inseguro
imprevisível
imaturo
tu me amarias?
tu me amarias se
eu te contasse que
toda a nossa vida em comum
cabe na palma de nossas mãos
e que ela haveria de voar um dia
para a liberdade de uma outra vida
só para não envelhecer?
tu me amarias?
tu me amarias
se as palavras me faltassem
se as palavras não me bastassem
se as palavras não estivessem mais
onde deveriam estar
ou se as palavras
juntas ou separadas
não significassem nada
desconexas
inexatas

não

tu não me amarias!

Identidade, Noite, Poesia

Começa outra noite.

às seis da tarde

Por que razão haveria de abrir os olhos,
se o que me rodeia já está dentro de mim.
Em vão perco o que em vão procuro.
Olhando sem olhar,
tocando sem tocar, ouvindo
sem que até mim chegue já som algum,
imóvel,
igual a uma pedra.
Pouco a pouco,
o oculto e o visível transformam-se num só
como o rio
e a sua sombra.
(E o silêncio
é escutar o coração de um anjo.)
Ponho à prova o presente:
o seu ponto de chegada sem chegada.
Pergunto-me quem sou,
quem és,
quem somos.
De pé , em frente ao abismo do silêncio,
começa outra noite.

“Caixa Negra” – Josep M Rodríguez